Governo João Goulart

     De todos os presidentes, um deles praticamente é ignorado por muitos. Seu nome é João Goulart, seu apelido era Jango. Gaúcho, era filho de um grande estancieiro, e ascendeu à política pela amizade com a família de Getúlio Vargas, que foi seu padrinho político e mentor. Durante toda a sua vida política, Jango viveu sobre a sombra de Vargas, só que não usou apenas do prestígio do homem que abriu as portas do mundo da política, mas sim acreditou nos ideais de Getúlio, e buscou realizá-las, sempre tentando fazer valer a sua vontade da forma constitucional, sem ter que recorrer ao golpe de estado. Seu mandato foi o resultado de uma crise criada pelo presidente Jânio Quadros, que renunciou ao cargo, deixando o cargo de presidente vago e deixando o seu vice em visita oficial à China e, de quebra, jogando o país em uma crise de gravíssimas conseqüências.
 
     Logo após a renúncia, os ministros militares, encabeçados pelo general Odílio Denis, tentaram frustrar a volta de Jango e a sua posse. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola ficou sabendo que Jânio havia renunciado (em um primeiro momento, Brizola achou que os militares haviam deposto o presidente, e chegou a enviar um comunicado de apoio à Jânio, convidando-o para resistir ao suposto golpe no Rio Grande do Sul) e dos planos dos militares de impedir o retorno e a posse de Jango, começou a organizar o que ficou conhecido como “Campanha da Legalidade”. O objetivo da campanha era fazer valer o que dizia a constituição vigente, que dizia que se o presidente renuncia, é o vice que assume o mandato. Desde o dia 25 de agosto, até o dia da posse de Jango, 7 de setembro, o Brasil quase enfrentou uma guerra civil.
 
     No sul do Brasil, Brizola mobilizou as polícias do estado e se preparou para uma invasão no estado, além de distribuir armas para a população, além dos discursos no na rádio Guaíba, que havia sido instalada nos porões do Palácio Piratini, nos quais atacava publicamente os militares e convocava a população à resistir ao golpe e fazer valer a constituição. Em todo o país houve manifestações de apoio à causa da Legalidade, o que mostrava a força do povo, e o conseqüente receio das elites do país em perder as suas regalias. O problema de Jango assumir o poder era claro (para a direita brasileira, claro como água): ele era discípulo direto de Vagas, que pessoas como Carlos Lacerda tinham feito o possível e o impossível pra se livrar, era um dos maiores nomes do trabalhismo no Brasil e presidente do PTB (o que, para muitos industriais, poderia significar uma era de greves, com a bênção do presidente) e, principalmente, o medo de um golpe comunista no Brasil.
 
     É fato que os setores da extrema direita queriam o fim do mundo do que aceitar um trabalhista no poder, pois mesmo não tendo tomado parte na tentativa de impedir a posse de Jango, eles apoiaram os militares, visando única e exclusivamente suas próprias preocupações, e a chance de comandar o país. Como era de praxe, essa tentativa de golpe foi chamada pelos militares de uma alternativa para manter o Brasil longe da ameaça comunista. Em minha opinião era papo furado, pois o que mais desejavam era uma desculpa de tomar o poder, e não apenas os militares, fossem eles apoiados pela esquerda ou pela direita, mas todos os setores da sociedade brasileira não se importavam com a democracia, apenas a defendiam quando era interessante mantê-la. Um exemplo disso foi quando foi lançada a Frente de Libertação Nacional, que foi um movimento suprapartidário com o único objetivo de unificar as esquerdas, e fazer as reformas de bases que Jango tanto queria, mas especialmente sem ter aprovação do congresso. Francisco Julião já tinha declarado no primeiro congresso camponês, dezembro de 1961, que a reforma agrária sairia “na marra”, se fosse preciso.
 
     Em contrapartida, a direita se organizava e, mesmo ainda que de forma discreta, planejavam já o golpe. Não tentaram fazer nada até 1964, quando acharam que, com o comício da Central do Brasil, Jango poderia colocar em prática as reformas de base e “passar por cima” do Congresso, caso as reformas não fossem aprovadas pela Casa Legislativa.
 
     Ao meu ver, o comício da Central foi a última tentativa de Jango ter o apoio da esquerda, pois ele já previa o que estava por vir, e não poderia impedir o golpe. Durante todo o seu governo teve que enfrentar as posições cada vez mais extremas da esquerda, que se recusava terminantemente em dividir o poder com partidos da direita, como o PSD, histórico aliado dos trabalhistas, além da própria direita temer cada vez mais um levante comunista, já que a esquerda estava tão unida e disposta em partir à luta armada para conseguir fazer as reformas. João Goulart pegou um Brasil afogado na inflação e quase sem recursos, e teve que encontrar medidas para tentar tirar o Brasil da bancarrota. Em 1962 foi aos Estados Unidos para pedir dinheiro para lidar com a crise econômica, mas não obteve sucesso.
 
     A esquerda dizia que o Brasil tinha que romper com o governo americano e se declarar um país comunista. A direita acusava Jango ser incompetente, já que todos os seus esforços em diminuir a inflação e de obter ajuda financeira internacional não renderam frutos, agravou a situação interna. A esquerda brasileira não aceitava que ele buscasse ajuda do FMI, defendia o calote. A direita acusava o presidente de não ser capaz de comandar o país. No meio disso tudo, Jango governava seguindo o regime parlamentarista (quando assumiu o cargo de presidente, a única alternativa para que os militares não tentarem seguir em frente e iniciar a tão temida guerra civil, foi implementar o parlamentarismo, limitando assim os poderes de Jango e impedindo-o de tomar qualquer atitude que prejudicasse a elite brasileira. Foi então que Jango começou um “jogo duplo”. Para acalmar as elites, aceitou governar sob as novas regras (do parlamentarismo), o que causou um ódio profundo em Brizola.
 
     Mas na verdade, tentava a todo momento mostrar a fragilidade do regime parlamentarista e sempre montava diversos gabinetes, com vários primeiros-ministros. O primeiro ministro do governo Jango foi Tancredo Neves, que era aliado político de Goulart e membro do PSD, que durou poucos meses no cargo, sendo substituído por Brochado da Rocha, que também não durou muito tempo no cargo, e foi sucedido por Hermes Lima, o último primeiro-ministro da história do Brasil, após o plebiscito que escolheu o presidencialismo, com 10 milhões de votos, contra apenas 2 milhões que defendiam o parlamentarismo. A votação do plebiscito foi a comprovação da popularidade de Jango mas, principalmente, a sua responsabilidade. Ele carregava em seus ombros o peso ser o herdeiro político de Getúlio Vargas, e toda a esquerda brasileira esperava que ele rompesse com o FMI e com os Estados Unidos e tomasse um novo caminho para o país (de preferência, o caminho comunista).
 
     Mas não é bem assim que aconteceu. Quando teve realmente o poder, Jango tentou organizar um governo de coalizão, o que irritou demais a extrema esquerda do PTB. Mas que irritou mais ainda seu cunhado, Brizola, que passou a criticar duramente o governo Goulart, acirrando ainda mais o clima dentro do trabalhismo brasileiro. Brizola não era a única preocupação de Jango. Carlos Lacerda, governador da Guanabara e a encarnação da oposição ao presidente, não poupou meios para desestruturar o governo de Jango, chegando ao cúmulo de, em uma entrevista à revista Los Angeles Times, atacando duramente o governo e causando uma revolta nos militares, que forçaram o presidente a decretar Estado de Sítio, na tentativa de prender o governador Lacerda, mas também contra o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, que falava publicamente que tinha sob seu comando homens bem armados e treinados para resistir a qualquer tentativa do governo federal de tirá-lo do poder (na prática, esses homens bem armados eram os efetivos da polícia militar, que haviam sido aumentados em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, como forma de se organizarem para derrubarem o presidente).
 
     A situação se agravava novamente, pois dessa vez eram os militares que exigiam do presidente uma atitude, que era decretar o Estado de Sítio e prender Lacerda (eu, sinceramente, mandaria matar, mas...). Só que aconteceu um pequeno problema para a execução do Estado de Sítio: o Congresso.  O Congresso Nacional deveria votar e aprovar o Estado de Sítio, mas era óbvio que essa medida era impopular entre os grandes nomes da política nacional da época. O que os militares queriam que Jango fizesse era esquecer a constituição e os trâmites legais e partir pra cima do Lacerda. Obviamente não foi isso que aconteceu. Por duas vezes, o presidente tentou fazer com que o Estado de Sitio fosse aprovado no Congresso, mas isso não ocorreu, pois alguns políticos que não tinham boas relações com os ministros militares, como Miguel Arraes, temiam que o Estado de Sítio pudesse acabar tirando eles também do poder. Jango tentou várias vezes mostrar que o Estado de Sítio era contra São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, apenas esses estados sofreriam intervenção.
 
     Mas não deu certo. O Estado de Sítio não foi aprovado pelo Congresso e Jango perdeu ainda mais crédito entre os militares. Mas também existiram outros problemas entre o presidente os militares. A espinha dorsal das forças armadas é rígida hierarquia. O problema é que, durante o governo João Goulart, essa hierarquia foi desrespeitada várias vezes. Isso ressentia muitos militares, pois seus subordinados tinham acesso direto ao presidente, e constantemente pediam para que interviesse em diversas questões, muitas vezes revogando decisões dos comandantes militares. Essa tensão entre comandantes e comandados atingiu o ápice quando o TSE cassou o mandatos de sargentos que haviam sido eleitos para o Congresso, gerando um movimento de revolta, onde marinheiros e sargentos ocuparam alguns prédios de Brasília (entre eles o do TSE), no dia 12 de setembro de 1963, mas que durou apenas 12 horas. Após esse incidente, ficou claro que havia um racha nas forças armadas, pois os sargentos, que haviam se organizado de forma parecida com os sindicatos, e que até tinham apoio de instituições como a UNE. Os oficiais que participaram da revolta foram punidos exemplarmente pelas forças armadas, e outras medidas foram tomadas para que isso não ocorresse mais. Mas a própria confiança que os comandantes militares depositavam no presidente não era mais a mesma. Após o fiasco da tentativa do Estado de Sítio, Jango perdeu ainda mais o seu prestígio, sem conseguir realizar nada do que havia proposto. O panorama do Brasil de 1963 era sombrio: não conseguíamos controlar a inflação, na política oposição e situação só não haviam partido para confronto armado por um milagre, os militares cada vez mais se bandeavam para as fileiras golpistas, e Jango estava cada vez mais isolado, sem apoio, perdido.
 
     O não de 1963, que havia começado para Jango com uma vitória, acaba com um gosto muito amargo. Mas ainda tinha 1964, como uma chispa de esperança, que ainda não o abandonava. Durante todo o ano de 1963, Jango teve que enfrentar uma dura oposição da direita, que usava todos os meios para engessar as reformas, e inviabilizar o seu governo, e também existia o problema das esquerdas, que não aceitavam o jeito “apático” e o tom “conciliador” de Jango nas questões internas e nas questões internacionais. Desde a década de 60 que a esquerda pregava que rompêssemos com o FMI e que não pagássemos a dívida externa, mas Goulart sabia que se fizesse isso seu governo não duraria mais que um mês, pois o governo americano iria sair do apoio discreto que dava aos golpistas e iria tirar pessoalmente o Jango do poder (eles já haviam feito isso diversas vezes).
 
     Resumindo, Jango estava, literalmente, entre a cruz e a espada, pois qualquer caminho que tomasse, iria desagradar a esquerda, que sempre fora a sua base eleitoral, mas que no final do seu governo havia tirado o seu apoio, e iria sempre ter problemas com a direita, que preferia ver o demônio no cargo de presidente do que ele. Mas a parte engraçada é que tanto a esquerda quanto a direita já haviam deixado bem claro que não faziam questão da democracia, se ela não conseguisse satisfazer as suas pretensões. Isso nos leva novamente a um pensamento: no Brasil da década de 60, a democracia era muito mais uma fantasia do que uma realidade, pois para as duas correntes político-ideológicas, ela poderia ser abolida, desde que não conseguisse atender aos seus anseios.
 
     Espero que esse texto não tenha ofendido muitas pessoas, estou ainda estudando sobre o período, e muito do que falei aqui são conclusões minhas, baseadas nas minhas fontes de pesquisa.

Bibliografia: FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011.
MARKUN, Paulo / HAMILTON, Duda. 1961: o Brasil entre a ditadura e a guerra civil. São Paulo, Benvirá, 2011.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castello. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

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